A proibição de Chalav Akum (leite ordenhado por um não-judeu sem supervisão direta de um judeu) tem suas raízes no Talmud, especificamente no Tratado Avodah Zarah 35b, onde os sábios instituíram o decreto com base no temor de que o leite pudesse ser misturado com leite de animais impuros, como o de porco ou camelo, que são proibidos pela Torá (Vayikra 11:4). A proibição, entretanto, não foi universal; e só se aplica quando existe uma possibilidade concreta de que o leite impuro tenha sido misturado.
Essa limitação prática é fundamental: onde não há animais impuros no rebanho do não-judeu ou onde a mistura é altamente improvável, não há razão para aplicar o decreto. Ademais, a própria Torá e os rabinos permitem a anulação (bitul) de pequenas quantidades de substâncias proibidas quando misturadas de forma inadvertida e em proporções específicas (Shulchan Aruch, Yoreh De'ah 98:1). Assim, mesmo que houvesse mistura de leite impuro em pequena quantidade, essa mistura seria anulada em proporções maiores de leite puro, tornando o leite permitido.
A diferença nos ciclos de lactação e no volume de produção entre animais puros, como a vaca, e animais impuros, como porcos ou camelos, é crucial para entender por que a preocupação com a mistura de leite era prática em tempos antigos, mas se torna praticamente irrelevante nos contextos modernos.
Para ilustrar, de acordo com o ranking da MilkPoint, que anualmente divulga os maiores produtores de leite no Brasil, as 10 maiores fazendas do último levantamento produziram juntas 659.625 litros de leite por dia, o que equivale a uma produção anual de 240.763.125 litros. Para atingir esse volume, seria necessário manter mais de 1.800 porcos ou camelos exclusivamente dedicados à ordenha — uma tarefa logisticamente inviável e economicamente absurda.
Além disso, animais impuros só produzem leite durante períodos específicos de lactação, que estão diretamente ligados ao ciclo de fertilidade e são significativamente mais curtos e restritos do que os das vacas leiteiras. Esse fator reduz ainda mais a plausibilidade de uma mistura significativa de leite impuro em uma escala tão grande.
Adicionalmente, o preço de mercado do leite ou derivados de animais como camelos ou jumentas é consideravelmente maior do que o do leite bovino, o que tornaria sua introdução em misturas comerciais um prejuízo para o produtor. Por fim, o rigor da fiscalização sanitária em países modernos praticamente elimina a possibilidade de que leite de animais impuros entre no mercado sem ser detectado.
Esses fatores combinados — a diferença nos ciclos de lactação, a inviabilidade econômica e logística e a fiscalização moderna — deixam claro o quão distante e irreal é a possibilidade de mistura de leite impuro no contexto contemporâneo.
Talmud Bavli, Avodah Zarah 35b:
O Talmud discute explicitamente o fundamento do decreto de Chalav Akum, destacando que ele foi estabelecido devido ao risco de mistura de leite impuro. Contudo, o Talmud reconhece que, na ausência de animais impuros ou em situações onde não há suspeita razoável, o decreto não seria aplicável.
Shulchan Aruch, Yoreh De'ah 115:1-2 (Rav Yosef Karo):
O Rabi Yosef Karo, autor do Shulchan Aruch, estabelece que a proibição de Chalav Akum depende do contexto. Ele permite o leite ordenhado por um não-judeu quando o judeu está presente, mesmo que não veja diretamente a ordenha, desde que seja sabido que o idólatra não possui animais impuros em seu rebanho. Em tais casos, a simples possibilidade de supervisão (mesmo indireta) é suficiente para evitar a suspeita.
Yabia Omer, Yoreh De'ah 4:5 (Rav Ovadia Yosef):
Rabi Ovadia Yosef reforça que o decreto de Chalav Akum é condicional, não absoluto, e baseia-se na realidade prática do risco de mistura. Ele menciona explicitamente que em contextos modernos, onde a fiscalização governamental garante que o leite seja puro, não há fundamento para aplicar o decreto.
Responsas de Rav Moshe Feinstein (Igrot Moshe, Yoreh De'ah 1:47):
Moshe Feinstein, desenvolve argumentos baseados no Talmud e no Shulchan Aruch, apontando que, em países com controle rigoroso sobre a produção de leite, a regulamentação governamental substitui a supervisão direta do judeu.
Sem animais impuros no rebanho: O leite é permitido mesmo sem supervisão direta, pois a possibilidade de mistura é inexistente.
Presença de animais impuros: É permitido se o judeu estiver presente em condições que possam levar o idólatra a temer ser descoberto (ex.: o judeu pode se levantar e observar). Inclui também “medo” advindo da supervisão governamental.
Queijos de idólatras: Enquanto existem condições lógicas para a permissão do leite que não tenha sido ordenhado por um judeu, a proibição do queijo de idólatra se mantém
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Manteiga de idólatras: Não se proíbe o consumo em locais onde há um costume estabelecido. A razão subjacente é que a produção de manteiga envolve processos nos quais resíduos de leite líquido, possivelmente contendo elementos proibidos, são significativamente reduzidos ou anulados.
1. Regras sobre o leite ordenhado por um idólatra sem supervisão de um judeu, queijo e manteiga. Contém três seifim:
Leite ordenhado por um idólatra sem que um judeu supervisione é proibido, pois existe o temor de que tenha sido misturado com leite impuro.
Se o idólatra ordenha em sua casa e o judeu está sentado do lado de fora, é permitido, desde que se saiba que ele não possui animais impuros no rebanho, mesmo que o judeu não consiga vê-lo no momento da ordenha.
Caso o idólatra possua animais impuros no rebanho e o judeu esteja sentado fora enquanto o idólatra ordenha para o consumo do judeu, é permitido se o judeu puder vê-lo ao se levantar, pois o idólatra teme ser observado e sabe que o leite impuro é proibido para judeus.
2. Queijos de idólatras:
Os sábios proibiram os queijos produzidos por idólatras, pois são coalhados utilizando o estômago de seus animais abatidos de forma inadequada (nevelá). Mesmo que sejam coalhados com ervas, os queijos continuam proibidos.
3. Manteiga de idólatras:
Não se deve repreender os moradores de um lugar onde é costume permitir a manteiga feita por idólatras. Contudo, se a maioria dos habitantes do local tem o costume de proibi-la, o costume não deve ser alterado.
Em lugares onde não há um costume definido, se a manteiga foi cozida até que os resíduos de leite tenham desaparecido, ela é permitida.
1. A eliminação natural de leite não kasher durante o processo de coagulação.
2. A supervisão indireta ou o temor do não-judeu em contextos onde há fiscalização.
3. A anulação de resquícios proibidos em manteiga quando fervida adequadamente.
Nos dias atuais, onde sistemas industriais e fiscalização pública garantem padrões elevados, muitas das preocupações originais se tornam irrelevantes. Assim, além da possibilidade de utilização das regras para anulação, permissões podem ser aplicadas em cenários onde o risco de mistura de leite impuro é inexistente ou insignificante.
12. O leite de um animal impuro não coalha nem se solidifica como o leite de um animal puro. E, se o leite de um animal impuro for misturado ao leite de um animal puro, ao coalhar, o leite puro se solidificará, e o leite impuro será eliminado juntamente com o líquido restante do queijo.
13. Por isso, a lei determina que todo leite obtido de um não-judeu é proibido, pois pode haver a suspeita de que foi misturado com leite de animal impuro. Já o queijo produzido por não-judeus é permitido, pois o leite de animal impuro não coalha. Contudo, nos dias dos Sábios da Mishná, decretaram uma proibição sobre o queijo dos não-judeus, pois eles o coagulavam usando estômago de animal de sua própria matança, que é considerada nevelá (carcaça não abatida de forma kosher). E se perguntar: "Mas o estômago é algo tão insignificante em relação ao leite coagulado, por que não é anulado pela sua pequena quantidade?" Isso ocorre porque o elemento que causa a coagulação é considerado determinante, e sendo algo proibido, torna o queijo inteiro proibido, como será explicado.
14. Quanto ao queijo produzido por não-judeus utilizando ervas ou líquidos de frutas, como o látex de figueira, sendo esses elementos visíveis no queijo, alguns dos Geonim instruíram que mesmo assim é proibido. Isso porque já foi decretado que todo queijo de não-judeu é proibido, seja coagulado com algo proibido ou permitido, devido à suspeita de que possa ser coagulado com substâncias proibidas.
15. Quem consome o queijo de um não-judeu ou leite ordenhado por um não-judeu sem supervisão de um judeu é punido com "makat mardut" (chicotadas de ordem rabínica). No entanto, quanto à manteiga de não-judeus, alguns dos Geonim permitiram, pois não foi decretada uma proibição sobre a manteiga, e o leite de animal impuro não solidifica. Outros Geonim, porém, proibiram devido aos traços de leite que permanecem na manteiga, já que o líquido restante na manteiga não se mistura completamente para ser anulado em sua mínima quantidade. E, portanto, todo leite de não-judeus é suspeito de conter misturas de leite de animal impuro.
16. Parece-me que, se alguém adquiriu manteiga de um não-judeu e a ferveu até que os traços de leite fossem eliminados, então essa manteiga será permitida. Pois, se houve mistura e tudo foi fervido, os traços são anulados devido à sua mínima quantidade. No entanto, manteiga fervida por um não-judeu permanece proibida devido ao uso de utensílios não-casher, como será explicado.
17. Um judeu que está próximo a um rebanho de um não-judeu, e o não-judeu lhe traz leite do rebanho, mesmo que haja animais impuros no rebanho, esse leite será permitido. E isso mesmo que o judeu não tenha visto o ordenhamento, desde que seja possível para ele observá-lo caso decida se levantar, pois o não-judeu teme ordenhar de um animal impuro, receoso de ser descoberto.